Época de final de ano, sempre me bate uma dúvida sobre como presentear minhas afilhadas. Além de “pedidos” encomendados pelo Papai Noel como o laptop da Peppa Pig ou uma fantástica fábrica de sorvete, tento sempre dar algo que gere alguma identificação com a nossa cor, para que desde novinhas elas tenham conscientização de que ser negra é ser bonita, é ter história, é encarar a vida com igualdade. É isso que depois vai resultar em jovens negras conscientes e seguras de si!
Consciência vem de berço: uma infância negra com mais identidade e igualdade
Entre os mimos da lista estão o livro o O Cabelo de Cora de Ana Zarco Câmara, bonecas de pano cubanas, um CD infantil com músicas do Vinícius de Moraes (que fiz questão de explicar que introduziu o afro-samba ao status de MPB), muito enfeites para deixar a cabeleira ainda mais linda e, mal sabem elas, que para esse Natal o “bom velhinho” reservou duas versões black das badaladas Monster High.
Mas ainda assim, isso só completa uma pontinha do meu grau de satisfação. Sem dúvidas, se fosse viável, minha escolha não seria presenteá-las com uma boneca dotada de uma estética totalmente adaptada, mas sim com 3 versões (pois é CLARO que também teria a minha) das lindas Queens of Africa ou, ainda, com as Positively Perfect Dolls, marca que descobri recentemente no Instagram, que tem o intuito de desenvolver brinquedos multiculturais para belas crianças multiculturais – como diz o seu perfil.
Todo esse papo, me remeteu à infância de mulheres como eu, que passaram por essa doce e cruel fase (você vai entender o porquê) há cerca de 15 anos atrás ou mais. Assim como as primeiras Barbies negras que surgiam na década de 90, éramos condicionadas a termos um padrão black friendly, baseada num estereotipo que não é nosso, com direito a cabelos alisados, nariz afilado, olhos verdes e corpos esguios. No mundo do desenho animado, o único que recordo vagamente de uma personagem negra influente era a Diana de Caverna do Dragão – talvez por isso nunca tenha sido muito fã de cartoons. Nossas manhãs? Sempre embaladas pelas apresentadoras lindas, loiras e com o ideal de princesa que sempre nos repassaram.
Por muitas vezes pais e mães, nascidos na geração “black power”, que conquistaram mais estudo e poder aquisitivo que o de seus pais, se viram diante da ascensão de classe social (frequentemente interpretada de forma “embranquecida”) e por uma questão de proteção, por receio do tal bullying e até mesmo por não saber como lidar, tentava nos encaixar nesses padrões como forma de nos “blindar”. E, pasmem, muitas escolas eram coniventes com tudo isso e repudiavam o fato de um menino/menina negra usarem um penteado que converse com a sua crespice, considerando-o uma “ousadia”, uma “subversão”. Com o pretexto de chamar muita atenção e poder virar motivo de piadas e chacotas, o “aconselhado” era retirar ou aderir a um visual mais “convencional”, afinal, era muito mais fácil do que ensinar a todos esses alunos a respeitarem as diferenças positivas, não é verdade?
Qual é o reflexo de todo esse combo de preconceito e discriminação? Muitas(os) de nós carregamos para a nossa vida adolescente/adulta uma espécie de Síndrome de Barbie Negra, na qual precisamos nos adequar a uma série de padrões para sermos aceitas(os). Nos tornamos melindradas(os) com o nosso corpo e nós mesmas(os) fazemos uma distorção da nossa imagem ao considerar que um black power pode ser fator eliminatório em uma entrevista de emprego, quando aceitamos em uma roda de amigas aquelas piadinhas do tipo “Tá vendo esse quadril enooooorme?! Eu também tenho um pé na senzala!“, ou pensando naquele pretendente que talvez possa nem se aproximar pois tem a seguinte mentalidade: “A menina é linda, mas precisa dar um jeito nesse cabelo“. São fórmulas prontas que ouvimos com uma certa naturalidade por aí e o nosso papel é passar como se fosse um rolo compressor por cima de tudo e fazermos entender que não é nada assim!
Polianismos à parte, eu prefiro noticiar a onda positiva de transformações que a geração de “Christies” (sim, a versão negra da Barbie ganhou nome e picumã para chamar de seu e isso também é reconhecimento!) tem enfrentado. De saber valorizar sua cultura, de enaltecer o poder de sua cabeleira e de se curtir do jeito que é. E o que passamos para essa nova infância, que tem acompanhado esse “black is beautifil 2.0” desde pequeninos? Que a diversidade é maravilhosa, a adequação não é necessária e que temos que nos amar cada vez mais, afinal, essa é a melhor forma de seguirmos com a luta!
Para finalizar, fui surpreendida um dia desses pela Carla Lemos, que me mostrou um post de Insta do grafiteiro Toz, que após conhecer o incrível trabalho de Juliana Luna e seu Project Tribe, que transforma turbantes em impressionantes coroas não só de forma literal, resolveu criar a sua primeira personagem negra, que merecidamente se chamará Luna. Achei um belo exercício de consciência diária, um belo retrato de que nossas palavras e questionamentos surtem efeito, um belo indício de que minhas afilhadas e nossos filhos crescerão mais familiarizados com personagens negros em todas as esferas, não apenas como coadjuvantes.
Ps: quer prova maior de que tudo isso faz sentido do que a fala do Gustavo de apenas 10 anos?
Identificação importa, eleva, inspira!
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